segunda-feira, 14 de março de 2011

Como nossos pais.

Meus pais me avisaram ontem que muito provavelmente não virão me ver em abril, como uma parte de mim já sabia. Talvez venham em junho, mas isso eles só planejarão no final de maio, quando todos os hotéis baratos estiverem lotados e os voos estiverem custando uma fortuna absurda, como é o caso agora para abril. Ah, e é claro, uma agência de turismo vai enfiar a faca neles, oferecendo um tour com visita guiada pra Versalhes a preços extorsivos, e eles a julgarão absolutamente necessária.

Ou seja, muito provavelmente, ficarei um ano sem vê-los e terei de jogar fora metade das minhas coisas, que não entrarão nas malas.

Fiquei chateada. 

Criei Paris para eles. A cada lugar que fui, pensei se os traria ali ou não. Queria que eles me vissem, desenvolta nessa língua sutil que é o francês. Queria buscá-los no Charles de Gaulle com a intimidade de residente da união européia, não de turista toda atrapalhada, sem saber para onde ir, que documentos mostrar pra quem.

Queria mostrar que eu sei onde comer o melhor crepe do Quartier Latin, que sei onde almoçar mexilhões por dez euros na Bastilha, de como sei onde comprar as cerejas mais deliciosas de Paris, ali pertinho de Montparnasse. De como as linhas de metrô são de fácil compreensão e de como por vezes dispenso os mapas.

Levaria-os para o Jardim de Luxemburgo, que em abril já estaria florido e lindo, depois para uma cerveja super cara na Tour Montparnasse, onde se paga pela vista excepcional. Faria o percurso turístico do Louvre, sabendo em quais galerias reter mais atenção. Explicaria cada uma das pontes mais conhecidas, e as menos também. 

Caminharíamos por Montmartre, até a praça linda onde jantaríamos no restaurante pequeníssimo, onde brigam por espaço umas poucas mesas e um piano. Passearíamos pelo Marais, veríamos a outra praça linda ali atrás, e decidiríamos entrar ou não no Pompidou. Falando em Pompidou, contaria sobre como presidente deixa em Paris sua marca em forma de complexo cultural: Louvre, Orsay, Pompidou, Quai Branly, e que agora o Sarko está tentando fazer um museu sobre a história de Paris no lugar onde ficavam os arquivos da cidade, o que está gerando mais uma polêmica. 

Contaria as histórias famosas do Monsieur Le Président, do pauv´con e do "tes problèmes de pêcheur!", e tantas coisas mais que encheriam o saco deles.

É que mostrar que sabia era minha única maneira de agradecê-los por terem permitido que eu o soubesse.

E agora, nada. 

Além disso, eu tinha planos de receber  na mala deles feijão, cachaça, tão prometida a nossos amigos aqui, para fazer a caipirinha que a gente nunca faz, porque a vodka é caríssima, cerca de 15 euros a garrafa de Smirnoff. Receber feijão, cachaça e mel, o melhor mel do mundo, o mel lá de casa.

Eu queria levar pra eles os produtos do Marché des Lices, onde coexistem os melhores queijos com os melhores salames, com as melhores azeitonas, com o melhor bolo de chocolate da história, tudo regado a cidra artesanal.

Mas isso vai ficar para uma outra história. Talvez quando eu volte para o mestrado. Porque eu preciso voltar.

Viajei para me encontrar, e absurdamente deu certo. Mas menos metafórica que deveria, me encontrei em um endereço preciso. Agora preciso voltar para onde sei que sou só desencontro. 

Queria que meus pais conhecessem Paris para entenderem minha ojeriza aos caras neandertais de Porto Alegre. Para verem o mundo que escolhi para ser meu. Para que eu mostrasse de cima da Torre Eiffel os pontos principais da cidade, as duas margens de um rio que corre há tantos anos que a eternidade torna-se possível.

Mas eles não virão. 

Cada mundo é absolutamente pessoal, eu sei. Mas queria compartilhá-lo. Como se fosse meu pão, essa paixão absurda por Paris, queria dividi-la ao meio e dar uma parte para cada um deles. Mas a mastigarei por inteiro, tola e solitária por uma cidade que não é a minha, mais ridícula ainda por saber do arbitrário da posse do que é só cimento e concreto.

quinta-feira, 10 de março de 2011

À espera dos bárbaros.

Sou árabe e derrubei dois ditadores em um mês - é assim que Mona Eltahawy começa um de seus vídeos. Pouco importa. Aqui na França, o discurso é análogo não importa onde reproduzido - veículos de comunicação de direita ou de esquerda: PRECAUÇÃO. O fantasma do Irã está adormecido em cada egípcio. Islamismo parece mais audível que o brado de 81 milhões de pessoas no Egito; de 10 milhões na Tunísia, das vozes caladas por Kadhafi. 

Homem sôfrego por um despotismo mais aguerrido que o governo democrático de Mubarak.
Falo de França, mas poderia muito bem falar de uma área mais ampla: o discurso não se altera nas vozes de meus amigos alemães e italianos. NÃO SE ENGANEM. Eles derrubaram Ben Ali e Mubarak. Seu sangue e sede rolam na Líbia. Mas NÃO SE ENGANEM. Ainda são eles, os árabes. E ser árabe é ser bárbaro, ser árabe é se importar mais com o véu opressor que com a democracia da qual meus amigos julgam-se os detentores últimos. A maioria dos protestantes não portava o véu no Egito, argumento, e as mulheres que o faziam estavam também protestando, afinal. Ah, sim, MAS NUNCA SE SABE. Eles ainda são os outros.

Nenhuma prova, nenhuma morte é suficiente para meus amigos europeus: os árabes têm uma certa predisposição genética para o despotismo e a submissão. Sim, Islã quer dizer submissão. Mas catolicismo, desde a história de Abrãao, depois a história de Jó, depois a Idade Média, é a mesma coisa, e voilà, somos democráticos, brancos e lindos. Claro que não devemos achar que, como Octávio Paz alertou, a democracia é instantânea, uma dessas sopas de três minutos que fazem companhia à minha vida de estudante aqui. Evidente que não. O que me espanta, no entanto, é a ausência de um único voto de confiança, de um "vamos ver" dito com algum tipo de otimismo, de uma idéia, de um comentário que possa misturar precaução, sim, necessária, com também alguma esperança, mais necessária ainda. Nada disso. Árabes e democracia são valores incompatíveis. Ressalto que escrevo "árabes", não muçulmanos: a eles pouco importa a confissão. Pouco importa a presença  católica nos protestos do Egito, pouco importa a proteção católica em torno dos muçulmanos para que eles pudessem fazer suas preces: é árabe, é despótico. Quase tão certo como a matemática, inventada pelos nossos bárbaros de hoje. 

Se acaso retruco que após todo o embate, toda a dificuldade, todo o sucesso dos movimentos, é quase nosso dever emitir esse voto de confiança, quer seja na fala, quer seja na escrita, de que uma sociedade nova surge, e o que surge sempre pode ser melhor, como pode ser pior também, obviedade. Mas pode ser melhor. Pode ser melhor e é nisso que cada protestante acredita, e é essa possibilidade que cada um de meus amigos afasta com a cabeça, olhando-me com descrédito: a ingênua latinoamericana. Mal sabe ela que os árabes sempre serão árabes. É irreversível. Toda revolução será o Irã. Toda a democracia será a Sharia. Alguns povos são incompatíveis à idéia de processo democrático - tão caro aos meus queridos amigos europeus, o processo que há quarenta anos morreu numa câmara de gás em Auschwitz. Que foi ressuscitado com muita massagem cardíaca. Depois de seis milhões exterminados. 

Mas pouco importa. Os europeus meus amigos reivindicam essa democracia como parte natural e fundadora de sua história, a democracia é deles e para eles, somente. Sim, para os norteamericanos também, mas o norteamericano é apenas um ex-europeu. 

Em uma outra discussão sobre a possível criação superficial de uma "identidade européia", meu amigo alemão foi categórico: o que define o europeu é sua crença na liberdade, na igualdade e na democracia! Que ótimo, retruquei, também sou européia: compartilho cada um desses valores! Não, não é assim! 

É preciso, segundo ele, ser europeu a priori para que a crença nesses valores te defina a posteriori como europeu. Oiq/ Simples: muçulmanos europeus não são europeus. Como Hannah Arendt expôs, o único laço existente na Europa, o laço que perpassava a nova invenção do Estado-moderno antes da IGM e no entre-guerras, era o ódio ao judeu, do qual os partidos políticos de ocasião puderam se aproveitar para legitimar a sede de um governo que ultrapassasse as fronteiras nacionais. Da mesma maneira, o que une "o europeu" de hoje, é a fobia ao muçulmano. Ao turco. Ao que não é europeu a posteriori. Que é impedido de sê-lo ainda que compartilhe desses valores, vez que sempre se achará mais um critério, mais um impeditivo.

Acho desnecessário comentar a não-universalidade desse pensamento. Pessoas coerentes e aptas a ler seu próprio tempo existem por tudo, e aqui não é diferente. Mas a recorrência, nas relações interpessoais, na mídia, nos cartazes xenofóbicos ("0% halal; 100% breton"  e afins) mostram que uma certa generalização, ao menos para um texto como esse, que você que o lê deve ser meu miguxo com xodads, pode ser realizada.

 Um outro fator importante é que há um muçulmano que é permitido na configuração europeia: como colocou minha amiga da Lituânia, os muçulmanos europeus podem ser muçulmanos à medida em que eles não "pareçam" muçulmanos. Muçulmano é benvindo quando não porta o véu, quando não faz suas cinco preces diárias, não come carne Halal - ele será benvindo quando for um muçulmano-ateu.

Como esse meu amigo alemão ilustrou bem "se os cristãos usam uma correntinha com um crucifixo, por que os muçulmanos não podem fazer a mesma coisa?" Ora, correntinhas de lua crescente, por que não? Seja muçulmano no maior estilo Like a prayer. Mas por que não o contrário? Cristãs de véu? Vocês sabem que curto o véu agora, sério, melhor coisa contra o vento e super gats para aqueles dias de cabelo ruim. A idéia perturba meu amigo alemão, que agora me olha com desprezo: não dá mesmo pra discutir essas coisas com não-europeus.