quinta-feira, 10 de março de 2011

À espera dos bárbaros.

Sou árabe e derrubei dois ditadores em um mês - é assim que Mona Eltahawy começa um de seus vídeos. Pouco importa. Aqui na França, o discurso é análogo não importa onde reproduzido - veículos de comunicação de direita ou de esquerda: PRECAUÇÃO. O fantasma do Irã está adormecido em cada egípcio. Islamismo parece mais audível que o brado de 81 milhões de pessoas no Egito; de 10 milhões na Tunísia, das vozes caladas por Kadhafi. 

Homem sôfrego por um despotismo mais aguerrido que o governo democrático de Mubarak.
Falo de França, mas poderia muito bem falar de uma área mais ampla: o discurso não se altera nas vozes de meus amigos alemães e italianos. NÃO SE ENGANEM. Eles derrubaram Ben Ali e Mubarak. Seu sangue e sede rolam na Líbia. Mas NÃO SE ENGANEM. Ainda são eles, os árabes. E ser árabe é ser bárbaro, ser árabe é se importar mais com o véu opressor que com a democracia da qual meus amigos julgam-se os detentores últimos. A maioria dos protestantes não portava o véu no Egito, argumento, e as mulheres que o faziam estavam também protestando, afinal. Ah, sim, MAS NUNCA SE SABE. Eles ainda são os outros.

Nenhuma prova, nenhuma morte é suficiente para meus amigos europeus: os árabes têm uma certa predisposição genética para o despotismo e a submissão. Sim, Islã quer dizer submissão. Mas catolicismo, desde a história de Abrãao, depois a história de Jó, depois a Idade Média, é a mesma coisa, e voilà, somos democráticos, brancos e lindos. Claro que não devemos achar que, como Octávio Paz alertou, a democracia é instantânea, uma dessas sopas de três minutos que fazem companhia à minha vida de estudante aqui. Evidente que não. O que me espanta, no entanto, é a ausência de um único voto de confiança, de um "vamos ver" dito com algum tipo de otimismo, de uma idéia, de um comentário que possa misturar precaução, sim, necessária, com também alguma esperança, mais necessária ainda. Nada disso. Árabes e democracia são valores incompatíveis. Ressalto que escrevo "árabes", não muçulmanos: a eles pouco importa a confissão. Pouco importa a presença  católica nos protestos do Egito, pouco importa a proteção católica em torno dos muçulmanos para que eles pudessem fazer suas preces: é árabe, é despótico. Quase tão certo como a matemática, inventada pelos nossos bárbaros de hoje. 

Se acaso retruco que após todo o embate, toda a dificuldade, todo o sucesso dos movimentos, é quase nosso dever emitir esse voto de confiança, quer seja na fala, quer seja na escrita, de que uma sociedade nova surge, e o que surge sempre pode ser melhor, como pode ser pior também, obviedade. Mas pode ser melhor. Pode ser melhor e é nisso que cada protestante acredita, e é essa possibilidade que cada um de meus amigos afasta com a cabeça, olhando-me com descrédito: a ingênua latinoamericana. Mal sabe ela que os árabes sempre serão árabes. É irreversível. Toda revolução será o Irã. Toda a democracia será a Sharia. Alguns povos são incompatíveis à idéia de processo democrático - tão caro aos meus queridos amigos europeus, o processo que há quarenta anos morreu numa câmara de gás em Auschwitz. Que foi ressuscitado com muita massagem cardíaca. Depois de seis milhões exterminados. 

Mas pouco importa. Os europeus meus amigos reivindicam essa democracia como parte natural e fundadora de sua história, a democracia é deles e para eles, somente. Sim, para os norteamericanos também, mas o norteamericano é apenas um ex-europeu. 

Em uma outra discussão sobre a possível criação superficial de uma "identidade européia", meu amigo alemão foi categórico: o que define o europeu é sua crença na liberdade, na igualdade e na democracia! Que ótimo, retruquei, também sou européia: compartilho cada um desses valores! Não, não é assim! 

É preciso, segundo ele, ser europeu a priori para que a crença nesses valores te defina a posteriori como europeu. Oiq/ Simples: muçulmanos europeus não são europeus. Como Hannah Arendt expôs, o único laço existente na Europa, o laço que perpassava a nova invenção do Estado-moderno antes da IGM e no entre-guerras, era o ódio ao judeu, do qual os partidos políticos de ocasião puderam se aproveitar para legitimar a sede de um governo que ultrapassasse as fronteiras nacionais. Da mesma maneira, o que une "o europeu" de hoje, é a fobia ao muçulmano. Ao turco. Ao que não é europeu a posteriori. Que é impedido de sê-lo ainda que compartilhe desses valores, vez que sempre se achará mais um critério, mais um impeditivo.

Acho desnecessário comentar a não-universalidade desse pensamento. Pessoas coerentes e aptas a ler seu próprio tempo existem por tudo, e aqui não é diferente. Mas a recorrência, nas relações interpessoais, na mídia, nos cartazes xenofóbicos ("0% halal; 100% breton"  e afins) mostram que uma certa generalização, ao menos para um texto como esse, que você que o lê deve ser meu miguxo com xodads, pode ser realizada.

 Um outro fator importante é que há um muçulmano que é permitido na configuração europeia: como colocou minha amiga da Lituânia, os muçulmanos europeus podem ser muçulmanos à medida em que eles não "pareçam" muçulmanos. Muçulmano é benvindo quando não porta o véu, quando não faz suas cinco preces diárias, não come carne Halal - ele será benvindo quando for um muçulmano-ateu.

Como esse meu amigo alemão ilustrou bem "se os cristãos usam uma correntinha com um crucifixo, por que os muçulmanos não podem fazer a mesma coisa?" Ora, correntinhas de lua crescente, por que não? Seja muçulmano no maior estilo Like a prayer. Mas por que não o contrário? Cristãs de véu? Vocês sabem que curto o véu agora, sério, melhor coisa contra o vento e super gats para aqueles dias de cabelo ruim. A idéia perturba meu amigo alemão, que agora me olha com desprezo: não dá mesmo pra discutir essas coisas com não-europeus.

Um comentário:

  1. "os muçulmanos europeus podem ser muçulmanos à medida em que eles não "pareçam" muçulmanos" - opa, senti um paralelo com todas as """minorias""" do mundo.

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