terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ao meio.

Ponte em Liège
Trens na Bélgica se separam ao meio. Pois é, pegamos o trem Namur - Liège, felizes com o turismo recém-feito e o turismo vincendo em Liège. Aí é que enquanto eu ouvia música e a Fran dormia, Cássio escuta: Dinan - TERMINUS.

Dependendo do vagão onde você estiver na Bélgica, parará em um lugar diferente. 

Não é só isso.

Dependendo de onde você estiver hoje na Bélgica, talvez pare em um país diferente.

Então, primeiro passo, O QUE É A BÉLGICA?

Namur: a cidade que resistiu bravamente a Louis XIV.
Assim, a Bélgica é o Uruguai europeu. Lembram das aulas de história? "O algodão entre dois cristais", um país feito para acalmar as rivalidades brasi-portenhas e tudo mais? Com a Bélgica é a mesma história. É um país de criação totalmente artificial, um pedaço de França, um pedaço de Holanda e um pedaço de Alemanha sob a mesma bandeira. Foi, então, um país inventado para amortizar os ânimos das Revoluções de 1830 e 1848. Nesse período, a atual Bélgica vai se rebelar contra a Holanda e ser um Estado próprio.

..mas que foi tomada por ele no final.
Esperaê. O que a Bélgica estava fazendo na Holanda, meldels? Culpa, é claro, do Congresso de Viena, que a tinha anexado à Holanda em 1815, ainda que entre belgas e holandeses as disparidades culturais fossem evidentes. Assim, com o suporte militar francês e a aprovação inglesa, a sublevação deu certo e a Bélgica tornou-se uma linda monarquia constitucional.

Mentira. A Bélgica continuou sendo o que sempre foi: um punhado de várias culturas e idiomas, mas com unificação tributária e um rei para gerar assuntos em comum entre os belgas. E, é claro e fundamental, bom chocolate. (Destaque para o chocolate branco de pistaches). 

Charme: a Bélgica tem.
Charme: a Leti não tem.
Só que cada região belga possui características próprias e mais assemelhadas a uma determinada cultura. Por exemplo, na região francesa, o Estado-providência francês é modelo e parâmetro; já na parte de Flanders (nordeste da Bélgica, basicamente), o sistema assemelha-se mais ao liberalismo holandês. Fica difícil governar assim. E tanto isso é verdade que agora os governos caem como no declínio do Império Romano. Um atrás do outro. O Rei Alberto, que jamais em sua vida tinha tido algum papel político outro que ser capa de revista, agora está desesperado, como os franceses ficam quando pensam em ter de trabalhar. Os ânimos entre a região francesa e a região de Flanders estão carregados.

No entanto, a região francesa está mais pela conversa e resolução dos conflitos, enquanto Flanders quer mesmo é separar-se. Isso porque os belgas-franceses são acolhedores e curtem os amigues de Flanders? Quase.

A região francesa está economicamente estagnada, embora Liège tenha sido a primeira cidade europeia a industrializar-se. Enquanto isso, a região de Flanders cresce, embora sinta-se refreada pela região francesa e sua alta cota de providencialismo estatal. 
Se eu fosse Louis XIV, pegava Namur pra mim também.

A isso, some-se o fato de que o pessoalzim do holandês, todos eles falam francês, e isso seria uma das premissas: de que em cada região cada habitante, embora falasse a sua língua, soubesse a outra. No entanto, na região francesa, não há quem fale holandês. De longe, parece pouco, mas no fim das contas, no cotidiano dos outros, é esse tipo de coisa que importa. 

A piada que o Bruno (aka irmão extraordinário do Cássio) contou, revela bem o clima: no hospital, ouviu de um dos pacientes que ele "viaja com o ar-condicionado ligado e as janelas do carro abertas, para ver se o aquecimento global inunda Flanders e a Holanda." E há também o médico que, falando para sua paciente que ela deveria ser reembolsada pela gasolina gastada pelas idas até o hospital (países europeus desenvolvidos!), mesmo pelas viagens já efetuadas há um tempo, viu o espanto dela, e então retrucou: não tem problema, os flanders estão pagando!", ao que os dois caíram na gargalhada.
art nouveau

Gentchy, Bruxelas é a capital da União Europeia. E não pega bem que o país da capital da união de todos os países esteja em vias de separar-se. Sem contar que isso pode pegar mal com o pessoal da Catalunha e coisas assim. É difícil que a situação agrave-se a ponto de uma real separação ocorrer, mas isso põe definitivamente em xeque essa aclamada união europeia, expondo de maneira quase anedótica sua fragilidade e ficção. 

Mas das coisas boas e interessantes:

Gramado.
Bruxelas é uma cidade extremamente charmosa. É indiscutivelmente a capital da UE, vez que abriga em si uma comunhão de elementos franceses, holandeses, mesmo alemães. Há momentos em que se pode jurar estar caminnhando por Paris, outras horas por Amsterdã. Mas sempre há, no entanto, um elemento distintivo, algo que aponta que não, aqui é Bruxelas. 

É provavelmente uma das capitais mais heterogêneas da Europa, o que a faz única, embora permeada de uma sensação de familiaridade recorrente, de "já vi isso antes quando estava em ...". A parte art nouveau da cidade é de aterrorizar os arquitetos modernosos, absolutamente incrível. 

E há também os belgas. Que em comparação aos franceses, são o povo mais gentil do mundo. Eles te "tutoyam" (verbo tutoyer - utilizar o "tu" na fala). Na França, jamais fui tutoyada na vida por agentes de trem. Fiquei surpresa ao ver isso acontecer na Bélgica. Uma boa surpresa.

A isso, acrescente-se a gastronomia maravilhosa, de moules (mexilhões) com batatas fritas ao melhor chocolate da história. 


 Deixo umas fotos.

E depois de amanhã vou pra Londres. Não me esperem acordados.







modernidade: não aceito.

Iluminismo. not.

Gosto de flores, whatever.

i do.

não foi crucificado à toa.

Lugar fantástico.

Igualdade de gênero

átomo construído em 1950.


Parque de Exposições


terça-feira, 5 de outubro de 2010

França: primeiras desimpressões.

 (Tentativa frustrada de fazer um texto pro Pare o Trem - tento novamente adiante, sem tocar na questão velhérrima da burqa, o que me é difícil).

Dia desses, vi um punk-anárco-mendigo, desses que só se produz na França, vestindo uma camiseta com os dizeres “liberté, égalité e fraternité”.  A palavra “fraternité”, no entanto, estava riscada e, por cima, escrito “mon cul”. Até aí, tudo bem. Ninguém vem pra França para receber uma acolhida calorosa desde...  Não, nunca aconteceu.

Problema é que hoje as outras duas palavras poderiam muito bem estar riscadas.

I. Liberdade, mon cul.

A liberdade francesa está condicionada à liberdade de ser francês. Ser francês é andar de rosto descoberto, é ter moradia fixa, conta bancária e fazer piqueniques aos domingos. Muçulmanos são livres para deixar o Islã e apregoar as maravilhas do Estado laico e da democracia. Aliás, para algumas religiões, o Estado francês é mais laico que para outras. Duas mil mulheres, mais ou menos, vestem a burka na França, um país de mais ou menos 65 milhões e meio de habitantes. Facílimo encontrar os números. No entanto, não há estimativas de quantas freiras na França ainda utilizam o hábito – veste, como a burka, no mínimo perturbadora para algumas feministas de plantão. Se passam dos dois mil, nem eu nem a wikipédia sabemos, mas deve ser um número  tão inexpressivo quanto, nem ao menos calculado. Logo, as mulheres francesas são livres para se submeterem, por meio do vestuário, ao deus cristão. Porém, se o fizerem com Alá, terão de pagar multas. Ou seja, de um lado, a mulher muçulmana francesa é subjugada pelo seu deus, que vai puni-la se ela não se vestir de uma certa maneira. Do outro, ela vai ser punida pelo seu Estado francês  democrático se se vestir de determinada maneira. Extremismo? Abordagens diferentes? Onde?

Claro que o fato de poucas mulheres usarem a burka não é um argumento convincente para a sua liberação. Poucas pessoas, quando se fala em França, matam as outras e, ainda assim, matar é proibido (e, senão por um abolicionista penal ou outro, as coisas estão bem assim por aqui). Questão é que proibir uma vestimenta utilizada por aproximadamente 0,003% da população francesa ontem e expulsar os Roma hoje abre precedentes xenofóbicos indeléveis. A liberdade torna-se bode expiatório, fundamenta o que no fundo é vestígio das Cruzadas. Em nome da liberdade, francesa e para os franceses, caberá proibir e deportar o que dissona. Nós, todos aqueles que não precisam ser tão livres assim no Império de Bruni.

II. Igualdade, mon cul.

Falando em expulsar os Roma, vamos para a cultura prêt-à-porter: os Roma são a maior população (aproximadamente 10 milhões) européia sem um país. São comumente os ciganos: lembra que, quando criança, se você saísse sozinho de casa um cigano ia lhe seqüestrar e você jamais veria seus pais de novo? Pois é. Ciganos roubam você de seus pais, ciganos não vão para escola e ciganos se vestem mal. Ninguém os quer por perto. Sarko deu jeito nisso: au revoir, bisou. Aliás, vocês se lembram da última vez em que uma certa população que vivia na Europa não tinha um país para si e começou a ter direitos civis suprimidos? A história não acabou bem. Como foi declarado por aqui “a última vez que a França deportou gente, foi quando ela mandou 75.000 judeus para a morte”.
Houve, por certo, protestos: estamos falando da França. Mas a população está alvoroçada demais com as mudanças no plano de aposentadoria para se preocupar com gente que nem trabalhar, trabalha. E a França ainda é uma dona-de-casa: cozinha mais que trabalha. Bancos segunda-feira? Nem pensar. Lojas 24h? Só se o imigrante argeliano estiver a fim. 

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O sistema de ensino francês.

Sim, pretensiosa como sou, estudando numa Grande École, acho que estou capacitada para falar do ensino francês como um todo. 

Ok, meus dias (MESES) traduzindo um artigo sobre metodologia me impedem de continuar essa farsa:

O sistema de ensino da Sciences Po Rennes para intercambistas, novo título.

Então que tenho a minha tese brilhante e inovadora de que se alguém é tratado como retardado mental, há grandes chances de que responda a isso agindo realmente como um retardado mental. Posso dizer que isso é um pouco de Erving Goffman aplicado à minha vidinha. Pois então que aqui somos um pouco tratados como retardados mentais.

Em primeiro lugar, para estrangeiros, a Sciences Po não é um lugar, pasmem, para estudar ciência política mas, preponderantemente, foca-se na Adoração Inconteste da França e Suas Cinco Repúblicas. Assim, nossas cadeiras obrigatórias são:

História e Civilização Francesa, Conferência de Método e Curso de Francês.

Claro que essas três cadeiras são colocadas NOS MESMOS HORÁRIOS das melhores cadeiras disponíveis, como História da China e umas outras geniais que o trauma de não poder fazê-las porque preciso IDOLATRAR a França me fez esquecer o nome. 

A professora de História e Civilização Francesa é a responsável por pérolas ao estilo de "La France était fasciste? Oui, mais pas trop." e "La Terreur était nécessaire? On ne sait pas."

Ela conseguiu a proeza inimaginável de fazer tanto a Revolução Francesa como a Revolução de 1848 parecer algo monótono e inacabável. E ainda segredou: "vocês vão saber mais sobre a história da França que os próprios franceses." Sim, querida, quando eu atravesso um continente para estudar Ciência Política, é exatamente isso que eu almejo, valeuaê.

A Conferência de Método consiste em fazer uma apresentação de 20 minutos sobre um tema proposto (no meu caso, o quadro "desmoiselles d´Avignon", do Picasso, embora todos os outros sejam mais específicos sobre, tcha-rããn, o Império de Carla Bruni). Tudo bem até, não fosse o fato de que em todas as aulas em que tu não estiver apresentando, terás de ficar sentado ouvindo os coleguinhas com seus franceses terríveis falando sobre coisas que não te interessam, e ainda assim, que tu estudou até a morte para a aula de Hist. e Civ. Francesa I. (Sim, porque semestre que vem tem a II).

O Curso de Francês, por sorte, tem uma professora, ao menos para a minha turma, maravilhosa. Mas graças aos horários ótimos, por causa dele vou ter que pegar ônibus e metrô mil vezes por semana para estudar árabe em outra universidade, porque o árabe da Sciences Po é no mesmo horário da aula de francês. 

Para entender: pegar um ônibus E um metrô, estando em Rennes, significa um deslocamento ABSURDO, que deve levar mais ou menos 20 minutos (?!), o equivalente a ir da minha casa (Zona Norte nortérrima) visitar o Gauti (Zona Sul) em petit poa. 

Então que detesto as aulas obrigatórias. Ma-as, não para aí. Os estudantes intercambistas SÃO OS ÚNICOS que precisam assinar chamada. Três faltas = um ponto a menos na média final. Para mim, para quem ir à aula não é senão uma sugestão, um roteiro de estudos, isso é o caos. Por enquanto, tudo bem, mas logo vou surtar e gritar que estou sendo discriminada. 

Claro que eu quero ir à aula, nunca deixei de ir em aulas que prestassem, até pela sua raridade. Mas esse tipo de coerção já grita: AULARUIMAULARUIM, me lembra das aulas do Odone. E do Saldanha. E do Alfredo. Enfim, sempre que tive aula com presença MANDATÓRIAOBRIGATÓRIAVEMVEM, nunca foi coisa muito boa. E sempre que tive uma aula boa, par contre, nunca faltei. LOGO, causa-consequência simples: aulas boas dispensam métodos coercitivos loucos; aulas ruins demandam-nos aos borbotões. É o que acontece aqui.

Mas há coisas boas, como há de ser. A aula de gender studies é genial: bem-estruturada, professores inteligentes e articulados e uma sala cheia. Lembrei muito das minhas aulas sobre modos de subjetivação de gênero em petit poa, que eram maravilhosas, realmente ótimas, mas que contavam com poucos alunos. Fiquei orgulhosa mesmo de ver toda aquela gente, uns 80, num chute que pode ou não ser preciso, atentos.

Ainda, o professor de macroeconomia, visivelmente pelo bem-estar social, é arguto, é ácido e engraçado e dá aulas muito boas, ponto para ele. Em Introdução à Ciência Política, estou tendo a aula que eu deveria ter tido no meu primeiro ano de direito: estudo do poder, de como é interessante a frase "ele tem poder" - o poder passível de posse; ou seja, materializado, até que se chegue à burocracia e, dela, aos excessos kafkianos que levaram aos sistemas totalitários e tudo mais. Ótimo.

Três aulas boas, uma aula ruim e duas meia-boca. Isto é, as ruins estavam em desvantagem. Pensando nisso, vou fazer DIP aqui, com uma professora que é competente, para ser honesta e simpática, e parece saber muito (começou a aula falando sobre tratados feitos entre o pessoalzim da Mesopotâmia, por exemplo), mas parece que ela está sendo forçada a dar a aula, que detesta aquilo. Tom monocórdio e uma didática que não deixa as coisas muito claras. Mas enfim, vou ir e assinar a chamada.

E aí que tem o árabe, no qual preciso me matricular. São 4h por semana, e adoro aprender uma língua em outra língua, além de que é difícil estudar árabe em petit poa. Tenho bons pressentimentos. (Quero barganhar em árabe no Marrocos no fim do mês).

Bem, já enchi o saco de vocês, e em mais duas semanas de aulas, já terei enchido bastante o meu. Mas daí vou pra Londres. E pro Magreb.

Dormir uma noite ao ar livre no SAARA, quem curte?
Mas disso eu falo outra hora.